Erlon José Paschoal *
Aproveitando este momento em Vitória, em que se protesta contra o sucateamento e o descaso público em relação ao Centro Cultural Carmélia Maria de Souza – quase há dez anos entregue às traças e ao abandono -, seria também bastante pertinente ler ou reler a única obra escrita por Carmélia (1936-1974), a “cronista do povo” como era chamada, o livro “Vento Sul”. Sua publicação feita pela UFES e pela gráfica Espírito Santo em 2002, traz também o prefácio do jornalista, escritor e cineasta Amylton de Almeida, um de seus grandes amigos, contextualizando o clima de pós-guerra e os anos 50 e 60 no Brasil e no mundo, inserindo assim a cronista nos grandes movimentos da cultura ocidental com seus valores, sua produção artística, suas revoluções fracassadas e os terrores impostos pelos regimes militares na América Latina.
Carmélia viveu pouco – morreu antes de completar 38 anos -, mas pelos relatos de seus contemporâneos, viveu e sofreu tudo muito intensamente, em um cotidiano regado a muitas conversas em mesas de bares, a muito consumo de bebidas alcoólicas e a muitos debates literários. Para Amylton, ela “não resistiu aos anos 70, à violência, grosseria e aspereza desta década de trevas e do culto à idiotia.”
Negra, pobre, autodidata e vinda do interior, Carmélia se tornou a grande cronista de uma época em que o jornal era a maior referência da vida social em uma cidade provinciana, preconceituosa e repleta de pessoas superficiais, mesquinhas e intolerantes, a TFC, a Tradicional Família Capixaba, como dizia. Ao mesmo tempo, era uma cidade que ela amava, enaltecia e onde se sentia feliz, deslumbrada com as cores do céu, os amigos, as madrugadas e os ventos revigorantes. Suas crônicas são perpassadas de solidão, de saudades, de Weltschmerz (dor do mundo) e também de alegrias em uma atmosfera repressiva estabelecida pela ditadura militar. Mas também de muita crítica, muita ironia, o que lhe rendeu muitos inimigos. Em uma de suas crônicas mais conhecidas ela definiu, astuta e ironicamente, o povo capixaba como “deletério”, uma palavra que poucos conhecem, mas cujo significado é bastante amplo, indo de nocivo a nefasto, de maléfico a destrutivo, de pestilento a maledicente.
Apesar de atrevida, ousada e corajosa, foi aceita até certo ponto pela sociedade da época, sobretudo, em função de sua força verbal – quando falava e quando escrevia -, por seus conhecimentos literários e por seus textos, que convenciam por sua qualidade até mesmo a seus inimigos, como dizia. Mesmo sem dinheiro, sentia-se rica: “Possuo uma riqueza muito melhor e maior que os ricos não possuem: uma riqueza que os rudes não enxergam e não entendem. Ela vem de dentro, e se me perguntarem como é que ela é, responderei assim: é uma coisa toda interior, grandiosa, sem fim, esta é a riqueza que me faz – embora pobre – imensamente rica, porque me faz feliz.”
Certa vez, relatou ela, pegou uma carona no fusca de Élcio Álvares que a elogiou deveras e rematou dizendo “Vitória não está à altura de sua genialidade” e sugeriu que ela se mudasse para o Rio de Janeiro, onde com toda certeza seria devidamente reconhecida. Ela achou curioso. De fato, de um lado percebia-se uma certa autodepreciação, um complexo de inferioridade de quem desvaloriza sua própria cultura, e de outro uma maneira suave, elegante e sincera de dizer: “Suma daqui”. Não sei o que ela diria hoje se visse uma multidão vestida com a camisa da CBF dizendo que a Terra é plana, que o nazismo é de esquerda, que queimar florestas e acabar com os índios é bom, que a tortura faz bem, que a ditadura militar nunca existiu e que a mamata acabou. Que crônicas ela escreveria a partir destas aberrações?
No entanto, naquele mundo opressivo com muita censura e muita vigilância, Carmélia acreditava no amor, na solidariedade, no afeto e naquela flor que furou o asfalto e o ódio, como escreveu Drummond. Carmélia via-se como “um pássaro mutilado….com minhas asas partidas”, mas sabia também que era um “pedaço desta ponte que haverá de conduzir a humanidade para um mundo melhor.” Que a cidade valorize sempre a e o Carmélia.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, Escritor e Tradutor de alemão.