Ester Abreu Vieira de Oliveira*
No segundo domingo de agosto, no Brasil, celebra-se o Dia dos Pais. É um dia festivo e concorrido nas famílias.
Na minha infância não havia este dia para comemorar. Seu início ocorreu em 1953 e .... muitos caminhos nesta vida eu já havia percorrido... Mas hoje vou relembrar fatos ocorridos com meu pai como uma forma de honrar o seu nome.
Ele não conheceu a mãe, que faleceu quando tinha vinte dias de nascido e foi criado pela irmã de meu avô, Pulcina, conhecida como Cínica, que não tinha ainda filhos, e lhe consentia uma vida o mais livre que possa ter uma criança, talvez por pena de sua orfandade. Segundo relatos, ia ao colégio só quando quisesse. A tia-mãe o deixava tomar banhos no açude e riachos, caçar preá, pacas, entre outros divertimentos em vez de ir ao colégio.
A caça era seu lazer. Para exercê-la tinha mais de cinco cães e uma espingarda. Ao sair para uma caçada, se fosse distante o local, ia num caminhão. Os cães partiam abanando o rabo, ladrando festivos com a expectativa do festim.
Entre os cães havia a Núbia. A mais caçadora. Era pequena e entrava nas mais difíceis tocas para ali encontrar o animal, que era quase sempre uma paca, cujos órgãos interiores eram distribuídos com ela e os demais cães, pois as partes maiores eram levadas para serem assadas. Porém, uma vez, ela não pôde sair da toca. Imprensada, foi ferida pelas garras da paca. Essa perda foi uma grande tristeza para meu pai.
Creio que se embrenhar nas matas, subir até as mais íngremes grotas, imitar com assovios diversos pássaros, e trazer ou não o produto da procura, era ações “transviadas” de amar a natureza e seus habitantes. Por isso, suponho que as histórias por ele contadas eram sempre de bichos. O macaco sempre muito sabido e a onça abobalhada. A coruja era doutrinária, o veado medroso, o pavão vaidoso, e assim por diante, cada animal tinha o seu destaque. Não eram muito longas as narrativas.
Meu pai, Ataulpho Vieira de Almeida, era um homem generoso, acalorado em suas ideias e opiniões políticas antigetulistas, antagonistas de meu avô Cornélio e minha mãe. Ele não frequentava as missas dos domingos como minha mãe queria, porém, ia à igreja se o sacerdote fosse famoso orador, e, principalmente, para ouvir o sermão da paixão. Mas o amor por minha mãe levou-o a descobrir o prazer da leitura.
Meu pai era agricultor. Tinha uma propriedade, em um terreno acidentado e com planície. Uma parte era herança do Pai, as outras acrescidas de parcelas compradas de irmãos. Na ocasião de minha infância possuía uma barbearia no centro da cidade. Depois, passou-a para perto da sala de visitas de nossa casa. Ali dialogava com vizinhos e fregueses dando vazão aos seus conhecimentos literários e políticos, nacionais e internacionais, ou lia para um grupo de pessoas fragmentos do jornal do Brasil ou do Correio da Manhã, ou o correio da Noite e ou jogava à bisca com amigos e meu avô. Ele era sensível e tinha uma memória prodigiosa, assim declamava longos poemas como “A ceia dos Cardeais” de Júlio Dantas. Poemas de Rosário Rizzo, Castro Alves, Casimiro de Abreu e Vicente de Carvalho, também declamava quando chegava uma visita em casa, nas reuniões familiares, e também, em festinhas cívicas.
Ele ia a sua propriedade a cavalo, no Pavuna. Lá ele tinha algumas cabeças de gado, variedades de produções: café, o principal produto, depois arroz, milho, feijão, banana, mandioca, hortaliças, árvores frutíferas: mangueiras, mexeriqueiras, laranjeiras, cambucazeiros, cajueiros e até árvore de canela.
Meu pai não tinha carro-de-boi e era uma pena, pois esse transporte, quando passava por nossa rua era uma festa. De longe ouvíamos o canto do carro em movimento e corríamos para uma carona por um bom pedaço do caminho. Mas, para o transporte dos produtos cultivados para vender na cidade ou levar o café para pilar, ele utilizava uma pequena tropa, de mulas e burros, que servia também para prestar serviços a outros agricultores.
Todas as noites ele ia até o centro da cidade e ali conversava com os amigos e esperava o noturno para apanhar o jornal que vinha do Rio de Janeiro. Eu prestava atenção quando estava chegando por seus passos fortes e pigarros, para abrir-lhe a porta porque sabia que trazia um gostoso doce de leite. No Natal colocávamos os sapatos à noite e, no outro dia, encontrávamos sapatos novos ou algum pequeno brinquedo. Mas o que me intrigava era que às vezes o sapato não servia e meu pai nos levava à Casa Siano para a troca do presente trazido por Papai Noel. Mistério!!
Meu pai lia muito. Suas ideias muito liberais não tinham minha mãe como adepta. A maioria de seus livros estava proibida para nós. Na estante interditada estavam livros científicos que tratavam de sexo, romances de Zola e Herculano, junto com obras de Coelho Neto, Eça de Queiroz, Castro Álvares, Bilac, Julio Dantas, Cesário Verde, Guerra Junqueiro, Augusto dos Anjos entre outros romancistas e poetas e um bom dicionário.
*Profa. Emérita da Ufes