Erlon José Paschoal*
A dramaturgia teatral, o texto escrito para ser encenado, tem se transformado significativamente ao longo das últimas décadas. As influências são diversas, sobretudo, se considerarmos que o teatro deve refletir o comportamento humano em seus mais variados matizes e o momento histórico no qual está inserido. Como o teatro hoje concorre, por assim dizer, com dezenas de outras possibilidades de fruição da realidade através da arte, ele precisa ser contundente, direto e prazeroso.
O desafio maior hoje seria construir um diálogo vivo e conectado com os novos públicos formados e influenciados em sua maioria pelas novas tecnologias e pelas novas mídias, sobretudo pelas redes sociais interativas. Para o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, o teatro deveria não somente reproduzir a realidade de uma determinada época, mas sobretudo estimular no espectador novas percepções desta realidade e reflexões que o levassem a transformá-la. Brecht, aliás, fez do teatro um espaço de discussão política e de transformação da sociedade. E ambicionou fazer do teatro também uma das formas mais eficazes para a educação crítica e social do homem, não só nos espaços destinados aos espetáculos teatrais, mas também em escolas e instituições similares. Novos tempos, novas vinculações. Infelizmente até os nossos dias essas propostas ainda esperam para serem implementadas.
Em nosso mundo neoliberal globalizado onde a regra é “se dar bem” custe o que custar e doa a quem doer, quase não há espaço para a reivindicação de valores éticos básicos para uma vida mais harmoniosa em sociedade, tais como solidariedade, justiça, senso de responsabilidade e amor ao próximo. Qualquer filminho americano ou novelinha de TV neoliberal deixa claro que isso não passa de história da carochinha, de uma utopia retrógrada e já devidamente ridicularizada pelos arautos do novo mundo pós-moderno. O teatro precisa, então, buscar novas possibilidades de inserção neste mundo repleto de sensações e estímulos contínuos.
Nesse contexto vale ressaltar um conceito-chave da mídia atual: a interatividade. Para o internautas, as diversas fronteiras antes muito sólidas, agora se desmancham no ar, sobretudo aquelas entre épocas e culturas, entre espaços geográficos e disciplinas do saber. A interatividade da internet desterritorializa. Passamos a nos sentir habitantes do mundo, sem fronteiras e sem raízes. Constroem-se grupos, tribos, com gostos ou predileções semelhantes, através da sociabilidade da rede. Por outro lado, essa sociedade fluida pode levar a uma perda irreparável das referências simbólicas de nossos próprios territórios, tão fundamentais em nossa relação com o próximo e com o mundo.
As fronteiras entre as várias disciplinas do saber, as práticas sociais, as identidades, as linguagens artísticas se dissolveram ou se tornaram tênues. Os conceitos de transversalidade, transdisciplinaridade e interface orientam, por sua vez, muitas de nossas ações e atividades. Mesmo fronteiras bastante sólidas foram abaladas: entre masculino e feminino e entre realidade e ficção, por exemplo.
Nesse contexto complexo acabo de lançar uma obra teatral, livro recém-publicado pela Editora Cândida, “O Céu é o Limite”, que intenta fazer parte desse universo de opções e formas diversas de observação e desfrute artístico da realidade, estimulando no público o senso crítico e a indignação frente a comportamentos cada vez mais torpes e cínicos que imperam em nossa sociedade. Trata-se, portanto, de um texto teatral envolvente, sarcástico e crítico. Ele retrata a vida de um personagem bem-sucedido em seu mundo de glamour, de ostentação, de cinismo e de desfaçatez, que tenta resgatar as relações de afeto com seu filho pós-adolescente, acompanhado sempre de suas irmãs dominadoras e ávidas por dinheiro e poder. Em uma encenação que duraria pouco menos de duas horas, o público é levado então a uma reflexão bem-humorada sobre o caos moral e a canalhice que ainda assolam o país, desde o golpe de 2016. Vale a pena rir para refletir!
No prefácio, Jovany Sales Rey afirma: “Há humor e muito, sutil ou escancarado, mas percebe-se com nitidez que, como Moliére, nosso autor despreza o riso histérico, buscando o ‘riso da alma’, interno. Sua ideia não é provocar risadas descompromissadas ou delas fazer brotar alguma reflexão superficial, facilmente esquecível ao fim do espetáculo. É, sim, revelar o mundo tal qual ele é, e revelar rosselianamente, aqui me referindo à estética de Roberto Rosselini, um dos inventores do neorrealismo italiano.”
E na avaliação de Denise Evangelista Vieira, os personagens de “O Céu é o Limite” são semelhantes aos do Teatro do Absurdo, pois são desumanizados. “Mas não no sentido formal do discurso, mas pelo uso de uma linguagem que acaba se mostrando estéril. A única necessidade é performar uma aparência, esvaziada de sentido. A palavra é, então, apenas uma vestimenta de algo sem conteúdo. A verdade está longe de ser uma preocupação. É possível dizer, logo ali desdizer, refazer o discurso, mentir, e mesmo transgredir estatutos sociais.”
Como todo texto teatral, esse aguarda também ser montado um dia por um grupo de atores empenhado em debater com o público aspectos relevantes de nossa realidade, mas sem perder a elegância, o bom humor e a precisão artística nessa que é uma das artes milenares mais significativas da cultura humana.
*Gestor Cultural, Dramaturgo, Diretor de Teatro, Professor e Tradutor