Ailse Therezinha Cypreste Romanelli*
Era um dia de estudo com um grupo de professores da rede estadual de ensino, aí pelos anos noventa. Estávamos avaliando o novo currículo escolar e eu deveria apresentar alguma coisa sobre a importância das bibliotecas nas escolas. O povo caiu na gargalhada. – “Ailse, mas você ainda está nessa? Não se usa mais biblioteca, a internet tem tudo.”
Recentemente soube de uma professora, na área de Letras, que passou por experiência semelhante. Em uma turma de Pós Graduação, citou autores da Literatura nacional. Foi contestada: “- Ei, professora, esse pessoal já era! Nem está mais na Internet”. Ou seja, mesmo autores consagrados, tornaram-se coisa do passado porque não estão na internet.
Pois é! Recebo um verso de Castro Alves em comemoração do Dia Nacional do Poeta. Alguém aí já leu Espumas Flutuantes? E Martim Cererê? E Juca Pirama? Estariam no acervo das bibliotecas escolares? Ora, direis, ouvir estrelas...
No passado, nas escolas brasileiras, bem ou mal, sempre havia um livro texto. Nas pequenas cidades não havia livraria, a pedido dos professores ou dos pais, a escola encomendava compêndios que reuniam lições das várias disciplinas – era a famosa sebenta; um livro que ia de um ano para o outro, passando de mão em mão, enquanto tivesse condições de uso.
Eram tempos remotos, mas sempre havia um livro de leitura (de preferência da série Erasmo Braga); e quando nada disso houvesse, recorria-se ao famoso caderno de pontos onde o conhecimento, reduzido a perguntas e respostas, seriam laboriosamente decoradas, no melhor estilo catequético jesuíta. Biblioteca só nas grandes escolas secundárias. Mas havia. E de boa qualidade.
Para tristeza dos saudosistas, esse tempo já vai longe, mas apesar da evolução da tecnologia e todo o discurso de democratização do ensino, nossos estudantes continuam sem saber ler, não dominam o uso social da língua, e não têm acesso à Literatura. Não há livros nas escolas. Esquisito, pois leitura é a primeira coisa que se aprende e em todo o mundo civilizado ela atravessa a educação elementar. Afinal a leitura é que dá acesso à Ciência, além da necessidade de obter informações; compreender certas situações do dia a dia; identificar fatos que nos sirvam de referência.
Tudo começa com a Alfabetização, para aprender a decodificar as palavras. Depois vem o Letramento. Lá pelo terceiro ano o vocabulário começa a se expandir para incorporar a linguagem técnica das várias áreas do conhecimento; ao mesmo tempo o aprendiz vai descobrindo para que servem os parágrafos, as virgulas, reticências, etc...Daí em diante é aperfeiçoamento.
Este é processo o básico do ensino de leitura que com algumas variantes continua usado em todo o mundo civilizado. Chama-se Illetrisme, na França, Literacy, na Inglaterra e Estados Unidos, Literacia, em Portugal. No Brasil seria Letramento. Mas em nosso país, os doutos pedagogos do MEC supõem que Letramento e Alfabetização sejam sinônimos. Uma vez alfabetizada, a criança já sabe ler. Ponto. Aos trancos e barrancos, ao longo de todas as séries iniciais, o aluno vai sendo apresentado a palavras estranhas: promontórios, galeões, meridianos, fuso horário, falésias e quejandos; segue pela vida afora e chega na graduação sem saber exatamente o que significam tais conceitos. Uns poucos procuram se informar; na sala de aula o aluno não entende e pergunta....o professor se irrita, porque não sabe responder....
Observei este “ciclo” ao longo de toda minha vida de professora. Nos cursos de Pedagogia descobri que muitas alunas não sabiam que cada disciplina tem um vocabulário próprio, no entanto já eram profissionais... Muitas se sentiam à vontade para perguntar e a explicação beneficiava a todas. Mas a maioria se cala.
Trabalhar com o Letramento é um pouco diferente do alfabetizar, inclusive ele deve estar presente durante as séries iniciais. Entra aí um componente que todos esquecem: a leitura exige um condicionamento muscular dos olhos. Isto mesmo; assim como vamos à academia malhar a barriga de tanquinho, é preciso malhar os músculos que movimentam os olhos durante a leitura.
Ao ler um texto, os olhos se movem da esquerda para a direta. No fim da linha é preciso voltar à esquerda e descer alguns milímetros para ler a linha seguinte. É por isso que as crianças costumam seguir a leitura com o dedo. O professor corrige; não sabe direito porque, mas corrige. Ele, professor, também costuma se perder e, em pouco tempo, sente sono. A leitura cansa e o leitor, muitas vezes não percebe o sentido do texto. Ouvi muitas vezes esse depoimento. Porém, se durante o período de aprendizado a leitura é praticada todos os dias, em pouco tempo a musculatura ocular estará treinada e o leitor já não precisará de guias. Ler deixará de ser cansativo para se tornar uma atividade prazerosa.
Ouvi muitos relatos de alunas, algumas já professoras com anos de experiência, que usavam uma régua ou um lápis. Diziam: “professora, preocupada em acertar as linhas, perco o sentido do todo”.
Porém, se é preciso ler, que sejam textos adequados à idade das crianças. Nada pesado ou amargo, a alta Literatura pode ficar para depois, porque quando alguém toma gosto, ela segue sozinha e logo chegará aos clássicos. O importante é que nos livros descobre-se uma infinidade de palavras novas, o vocabulário se enriquece e como pensamos com palavras, os pensamentos se tornam mais claros e o raciocínio mais preciso. Com os livros aprendemos a pensar.
Entretanto, livros são caros e a maioria dos alunos da escola pública não dispõe de meios para comprá-los. Dependem exclusivamente da escola como fonte de conhecimento. Se ela falha os resultados são bem conhecidos. “Ah! mas tem a internet.” Entretanto, a realidade de nosso país, é outra. Nem todas as crianças têm acesso a ela.
Nas pesquisas sobre a qualidade do ensino, a Biblioteca aparece como um dos melhores indicadores da qualidade do estabelecimento, mas entre nós o tema provoca o riso, parecendo jurássico nestes tempos de inteligência artificial. Entretanto, a legislação do país define a Biblioteca Escolar como um dispositivo informacional obrigatório em todas as instituições de ensino públicas e privadas. (grifo nosso).
A lei federal estabelece ainda “um acervo mínimo de um título para cada aluno matriculado e um bibliotecário por colégio” estabelecendo um prazo até 2024, para as escolas se adequarem a estas exigências. Estão rindo?
Já os países desenvolvidos seguem padrões internacionais com especificações precisas sobre espaços e serviços: matrículas entre 200 e 1000 alunos, acervo mínimo de 6000 a 10000 títulos, incluindo periódicos, obras de referência, livros profissionais para professores; o local para consultas e leitura deve comportar, pelo menos, 10% da matrícula total, considerando-se 1m² por aluno.
Se você chegou até aqui, já deve estar fazendo muxoxo e dando de ombros. Mas estaria o primeiro mundo atrasado, desperdiçando seus preciosos euros, dólares, ienes ou libras em livros? Depois, ninguém sabe porque, nos exames internacionais, nossos alunos ainda não saíram do nível de analfabetos funcionais.
É só para refletir.
* Membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras
Cadeira nº 25