Por Ester Abreu Vieira de Oliveira
Na Idade Media européia deu-se muita importância a superstições, feitiçarias, aparições e agouros, e essas crenças continuaram a subsistir ao longo dos séculos e despertaram a mais forte emoção do ser humano: o medo.Com baladas, canções, romances e lendas, em prosa e verso, o homem tem questionado o sobrenatural, na literatura oral ou escrita, em todas as épocas e países. Nesses textos encontram-se contos populares, narrados ou cantados sobre o confronto de um homem com um ser de outro mundo que vem dar um aviso ou prestar contas.
Os mistérios sobrenaturais, os fenômenos que não podem ser explicados pela ciência, como aparições, lugares mal-assombrados e espectros falando ou movendo-se, costumam provocar um fascínio e certo temor nas pessoas. Sempre há alguém que ouviu falar de casos assombrosos ou com quem aconteceu alguma história de sustos e visões. Há inclusive pessoas que dizem ter fotografado uma assombração.
O teatro, comunicação viva de contato direto com o público tem aproveitado esse tema como motivação para ressaltar o lado trágico da vida, apontando o resultado de uma falta humana grave, desenvolvendo os motivos que giram em torno da tensão vida e morte, como sucede com Hamlet, em Hamlet, de Shakespeare, e com Don Juan Tenório, no Zombeteiro de Sevilha, de Tirso de Molina, ou produzindo situações cômicas, como em Don Gil de las Calzas Verdes, obra também de Tirso.
Na peça de Shakespeare, passada na Dinamarca, o Príncipe Hamlet quer vingar a morte de seu pai, o rei, executando seu tio Cláudio, que havia se casado com sua mãe, Gertrudes, ter envenenado o seu pai e lhe tomado o trono. Na escuridão das noites frias dinamarquesas, no Castelo Real, um fantasma aparece às sentinelas e a Horácio, mas Hamlet, conhecedor do fato, resolve vê-lo. O Fantasma lhe aparece e lhe revela ser o seu pai e lhe declara que Cláudio foi quem o havia envenenado e lhe pede que vingue sua morte. Para exercer a vingança Hamlet se finge de louco. Em Zombeteiro de Sevilha, a peça desenvolve a história do nobre espanhol, Don Juan Tenório, que teve uma vida devassa, cheia de amores conquistados e abandonados, e foi castigado por Deus. Nessa obra, entre os motivos de Thanatos (a Morte) estão o da honra, o das relações políticas e sociais, os motivos religiosos de total repressão e, no final da representação desenvolve-se motivo do sobrenatural com o surgimento do nobre assassinado e a caída do pecador no inferno. Don Juan Tenório e Hamlet são tipos literários de imensa força. Eles modelam os caracteres sociais de seu tempo e alguns tipos fundamentais de comportamento universalmente humanos. Enquanto o teatro espanhol se alimenta de tradição épica espanhola (submissão ao rei) e da teologia, o teatro inglês se apóia na crônica nacional – dramas históricos - e, há, em Shakespeare, um domínio de uma filiação do pensamento renascentista e uma atitude cética de Montaigne.
A morte é o vazio. É o que falta ao homem. Enquanto viver é seguir para o desconhecido, é enfrentar a morte e proteger-se dela. O tema da morte, cultivado, durante a Idade Media europeia na imaginação popular, é tema núcleo tanto em Hamlet quanto no Zombeteiro. Nas duas obras há aparições que assinalam as pulsões de vida e morte.
Mas Don Gil de las Calzas Verdes, uma farsa de Tirso, representa as artimanhas de uma jovem, Dona Juana, traída pelo noivo, que se veste de homem para vingar do seu sedutor, com o nome de Matim. Não sabia que seu noivo havia mudado o nome para Martim. Encontra-se com a noiva dele e esta se enamorar dela e nos quid pro quos dos enganos entre aparecer e desaparecer, será decodificado como sobrenatural.
O teatro se aproveitou do motivo do sobrenatural para pôr em destaque a vingança. Porém o fantasma só aparece efetivamente em cena quando a infra-estrutura do local do espetáculo, com a criação das “tramóias”, isto é, quando construíram palcos em que havia alçapões, escadas, cordas, cortinas, e outros objetos que viessem ajudar a provocar verossimilhança à cena, para que o mundo insólito do sobrenatural pudesse reproduzir, com mais eficácia, o desconhecido, gerado pela cisão de dois mundos: o real e o imaginário. E o sobrenatural, tanto em O Zombeteiro de Sevilha como em Hamlet é uma alegoria de ordem cristã: o castigo do pecado, além de ser uma denúncia às transgressões sociais. No teatro, quando aparecem os fantasmas, há mais de uma pessoa presente, uma forma de dar à cena verossimilhança. E, nas aparições, servem para dar testemunhas de um fato insólito. Por isso, há quase sempre mais de uma pessoa presente, uns só vêem o ser sobrenatural, outros podem vê-lo e falar com ele, e outros só podem ouvi-lo. Mas os fantasmas podem caminhar, andar, falar e gesticular.
Suas aparições são muito teatrais. Eles servem para transmitir a crença de que o mundo do além é concreto como este em que se vive e que existe um tempo preciso. Deixam a mensagem de que lá se come e bebe, para os maus há fogo para atormentar e no ar existe cheiro de enxofre, mas para os bons há tranquilidade e luz. O fantasma do pai de Hamlet lhe diz: “Já; é quase hora de eu voltar para as sulfúreas; e torturantes chamas”, enquanto a estátua do Comendador confirma, à pergunta de Catalinón, o criado de Don Juan, de que lá a vida é boa, que se dá prêmio à poesia e que há bebida (vinho) fresca.
O ambiente é sempre propício para o aparecimento do sobrenatural. Há sons indefinidos. Badalam sinos longínquos. A noite é escura, há penumbra e cantos de galo. Hamlet tem contato com o fantasma do pai em uma noite de muito frio, de intenso nevoeiro, depois da meia noite, antes de o galo cantar. Don Juan Tenório recebe a visita da Estátua do Comendador à noite de uma terça-feira, dia considerado na Espanha como o dia do azar. Antecipando a aparição, há barulhos de passos fortes. A reação dos videntes é de medo, admiração e pavor, gerado de estremecimentos, arrepios, cabelo levantado, gagueira, palidez e sensações físicas desagradáveis.
Os fantasmas que aparecem para esses dois personagens têm desejo de vingança, depois de realizar o contacto que lhes interessa, afundam-se no interior do solo. O surgimento do sobrenatural na cena é uma tentativa de provocar o terror, mas não deixa de ter sempre alguma coisa cômica para abrandá-lo, isso, naturalmente para acalmar o espectador. Assim é cômica a expressão de Hamlet ao referir-se à posição do fantasma, de maneira pejorativa, quando fala do interior da terra e lhe chama “velho toupeira”. Assim, também, são cômicas as manifestações de medo de Catalinón, o criado de Don Juan, - cair, levantar, gaguejar - e a sua curiosidade em saber pormenores da vida do além.
Por meio dos Miracles, na Idade Média, o elemento sobrenatural religioso (principalmente o cristão) se introduziu no gênero dramático com o objetivo de transmitir ao povo, de forma acessível e concreta, as lendas de vidas de santos, as narrativas piedosas e os motivos folclóricos. As representações ocorriam no dia comemorativo de cada Santo. Os personagens eram comuns. As situações com as quais se defrontavam eram terríveis, mas pelo arrependimento ou pela intervenção da Virgem Maria eles se salvavam.
Já nas Moralidades, os valores morais eram mostrados alegoricamente. Assim, os atores encarnavam Juízo, Perdão, Boas Ações, Discrição, Cinco Sentidos, Sete Pecados Mortais, Sete Virtudes Cardeais, entre outros conceitos do bem e do mal e o seu eterno conflito, visando à edificação do ser humano. Porém a representação do vício e do demônio produziu um ritual mítico, porque exibia as forças que sempre atuaram sobre a alma humana. Mas são as oposições míticas do tipo vida - morte, sublinhadas pelos conflitos sociais no nível familiar, porque neles reside uma violação da ordem do mundo, que produziram um maior choque no auditório. São essas situações conflituosas que melhor se adaptaram à representação de castigo de um erro que faz os personagens trágicos culpáveis e oferece a oportunidade de se ter uma Justiça Divina. Para melhor simular o castigo de um pecado (transgressão à Lei Divina), as pessoas imaginativas encontraram no insólito um arsenal de motivos. Sendo muitos deles, pertencentes a um mundo atávico do desconhecido, onde os fantasmas têm primazia (aparições de mortos, de almas penas) que, segundo a crendice popular são espíritos endemoniados. Eles adquiriram forma humana ou almas que estão purgando uma culpa antes de poderem entrar no céu.
Atávicos medos circulavam por um auditório familiar ouvindo acontecimento ocorrido com o avô, tios e compadres quando, irreverentes, foram certificar a veracidade de fatos que estavam ocorrendo na fazenda de coisas que eram atiradas por mãos invisíveis. Diante da arrogância desses ancestrais, recebendo laranjas, linguiça e objetos diversos com gargalhadas e pedindo mais, o invisível fantasma os jogou para fora da casa com cadeira e tudo. Não havia entre eles e o fantasma um desejo de vingança como o representado pelos protagonistas de Hamlet e de O Zombeteiro de Sevilha, mas de uma irreverência que, talvez, fosse uma forma de encobrir o medo. Se o fato era paranormal ou não, verdade ou mentira, o auditório não cogitava, mas as mãos nervosas se apertavam ao ouvir a história...
São os fantasmas nunca vistos que davam medo nas noites pouco iluminadas, quando se tinha que passar pela escura jaqueira, pelo ruidoso e escuro bambuzal, pelo silencioso cemitério familiar, perto do prédio desabitado nas noites chuvosas quando as janelas batiam ou quando a luz acendia ou apagava de repente. Porém, a curiosidade é sempre mais forte. Assim, apesar de o coração ficar apertado, os ombros encolhidos, não se deixava de ouvir contar os casos de enterros noturnos acompanhados por vozes que desapareciam na curva da estrada entre outras narrativas de fatos sobrenaturais ocorridos com alguém do auditório. Essa curiosidade é uma forma de se adquirir a coragem para enfrentar as muitas ilusões da vida e para triunfar do medo.
Referências
MOLINA, Tirso. (Fray Gabriel Tellez) El Burlador de Sevilla y Convidado de Piedra. Ed. crítica de Blanca de los Ríos. Madrid: Aguilar, 1962.
OLIVEIRA, Ester Abreu Vieira de. O mito de don Juan: suas relações com Eros e Tanatos. Vila Velha, ES, Opção, Editora, 2013.
SHAKESPEARE, William. Obra Completa. Nova versão, anotada de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. vol. 1, p. 531- 619.
* Professora e Escritora