Por Ricardo Coelho dos Santos*
No Brasil, tristemente esquecemos nossa História. Daí se questiona quem foram as personalidades importantes que hoje dão nome a ruas, praças e até cidades. Como exemplo, em Vila Velha, ES, um parlamentar quis mudar a principal avenida da Praia da Costa, o bairro mais elegante, tirando o nome de Antônio Gil Veloso, um dos prefeitos que mais contribuíram para o progresso canela-verde.
Em 17 de abril último, faleceu Romero Oswaldo Loures Machado, aos noventa anos de idade. Homem de convicções firmes, deixou um legado inestimável sobre um acontecimento histórico pouco conhecido. Lutou obstinada e heroicamente, nos últimos trinta anos, para que o chamado Desastre da Mantiqueira não fosse esquecido. Juntou textos e depoimentos mais fotos que vieram a se tornar um acervo valioso sobre esse desastre ferroviário ocorrido às 2:05 h do dia 19 de dezembro de 1938, em que ele seria um dos sobreviventes – e foi o último dos vivos até sua partida.
Essa história envolve escoteiros, e Romero foi membro atuante do Movimento Escoteiro até o final da vida, não perdendo eventos em que pudesse divulgar a história do desastre, que consistiu no choque entre o trem onde estavam embarcados, entre os passageiros, os jovens e os responsáveis pela viagem, e um trem de carga. No acidente, quarenta pessoas morreram; entre esses, o Lobinho — escoteiro com idade entre seis anos e meio e onze anos incompletos — Hélio Marcos de Oliveira Santos e o Escoteiro — um jovem entre os onze e dezessete anos — Gerson Issa Satuf. Na época não havia um programa para a idade entre quinze e dezoito anos incompletos.
Temendo a explosão das caldeiras, muitos tripulantes abandonaram o local, e ficou com os escoteiros, coordenados pelo Chefe Clairmont Orlando Gomes, o trabalho de tratamento máximo dos feridos e demais sobreviventes. Fizeram o que seus conhecimentos e práticas permitiram: acenderam fogueiras em locais seguros para proporcionar calor e iluminação e trataram dos ferimentos leves dos passageiros e deles mesmos. Romero, então um Lobinho, perdera quatro dentes e teve uma contusão no nariz. O pânico dos funcionários não abalou os jovens e alguns adultos resolveram seguir seus exemplos. Os ferimentos mais graves, como os causados por prisões entre o madeirame dos vagões e as ferragens, não foram tratados, inclusive porque seria assunto para especialistas com treinamento específico a fim de não causar outras mágoas aos feridos. Entre esses feridos estava o Escoteiro Caio Vianna Martins, Monitor da Patrulha Lobo, com quinze anos de idade, na época. Ele estava com uma forte hemorragia interna.
O socorro só veio a chegar às sete horas da manhã. Numa época com poucas comunicações, foi a falta dos trens nas estações nos horários estabelecidos que acionou a emergência. Caio Martins, ferido, seria levado por uma padiola, mas havia muitos outros a serem ainda atendidos, e, lembrando da frase do fundador do Escotismo, Lorde Baden-Powell, ele citou uma frase sua feita para outro tipo de situação: “O Escoteiro caminha com as próprias pernas”, e foi assim que ele se dirigiu a um carro de socorro.
Desconhecendo a hemorragia interna, ele inicialmente foi conduzido a um hotel em Barbacena, onde o sangramento se revelou. Levado a um hotel, ele viera a falecer às duas horas da manhã, vinte e quatro horas após o desastre.
Caio Vianna Martins possuía um currículo de jovem que proativamente ajudava a sociedade invejável até mesmo para um adulto. Nascido em Matozinhos, MG, em 13 de julho de 1923, ele costumava doar toda a sua mesada aos pobres desde os oito anos. Numa feita, faltara aula por quinze dias para ajudar uma família doente. Seu pai, o farmacêutico Raimundo da Silva, e sua mãe, Dona Branca, estiveram presentes na morte do filho.
O significado histórico do gesto de Caio Martins, testemunhado por Romero Machado e por tantos outros sobreviventes, foi particularmente ressaltado por um jornal e isso inflamou os sentimentos nacionalistas tão em moda na época. O Brasil estava às portas da Segunda Grande Guerra e relatos de demonstrações de coragem estavam sendo uma necessidade tanto para o povo como para a mídia, principalmente quando vindo por parte de um menino. Hoje, há um estádio de futebol em Niterói, uma rua em Cariacica, ES, uma avenida na cidade natal, praças no Rio de Janeiro e em Belford Roxo e vários Grupos Escoteiros do Brasil homenageando seu nome. Porém, por ser uma história pouco conhecida, já houve quem desvinculasse seu nome ao Escotismo. Por causa do estádio, houve quem cresse ter ele sido um jogador de futebol.
Gestos heroicos por parte de crianças e jovens não são novidades, nem mesmo são acontecimentos raros. Eles, preocupados com suas comunidades, costumam até se associar a organizações com a mesma direção das suas filosofias. Nenhum movimento educacional sério promove uma ação perigosa para seus membros de quaisquer idades, mas os mais audaciosos são os que já vinham procurando contribuir com a sociedade para se sentirem verdadeiramente úteis. Assim, o gesto do altruísta Caio Martins veio a se tornar icônico, um exemplo a ser seguido por todos os cidadãos, escoteiros ou não, nesses anos conturbados das décadas de quarenta e cinquenta, com uma grande guerra, mais expansão industrial, ufanismo e expansão educacional. Hoje, quase somente os Escoteiros se recordam de Caio Martins, ressaltando sua frase voltando ao que Baden-Powell queria dizer: “um escoteiro não depende de outras pessoas para o que tiver de ser feito”, isso dito para reforçar o espírito de equipe e todos trabalharem juntos com cada um dando o máximo de si mesmo.
Caio Martins não foi o único escoteiro a ser reconhecido com o nome de um logradouro. Há outros que lembram personalidades não pelos seus feitos como escoteiros, mas pelas suas atuações comunitárias: grandes homens que viram seus ideais confundidos com o Escotismo. No Espírito Santo, podemos citar, sem muito aprofundamento, alguns nomes de escolas, ruas, estádios de futebol, rodovias e até uma cidade que homenagearam escoteiros ilustres: Alberto de Almeida, Bartouvino Costa, Placidino Passos, Ely Junqueira, Atílio Vivácqua, Ernesto Guimarães, Washington Luís, Mário Gurgel e o já citado Antônio Gil Veloso.
Ainda, podemos citar nomes mais recentes de cidadãos exemplares e que passaram pelo Escotismo, no Brasil e que mantiveram as atitudes positivas e as mentes criativas que tinham como jovens escoteiros: Itamar Franco, Celso Cavallini, Frei Betto, Dom Hélder Câmara, Ex-Vice-Presidente José Alencar Gomes da Silva, Kleiton e Kledir, Luiz Paulo Veloso Lucas, Manuel Bandeira, Mário Covas, Moacyr Scliar, Paixão Côrtes, Peninha, Sérgio Vieira de Mello, Waldemar Niclevicz, Zacarias e Zilda Arns. Muita gente influenciada por um movimento centenário. Esperamos haver mais!
Fonte: acervo de Romero Machado, Centro Cultural do Movimento Escoteiro e Patrulha Jaguatirica — Historiadores do Escotismo e Efemérides Escoteiras em http://celsoneves.blogspot.com/.
* Engenheiro, Escritor, articulista de Debates em Rede, autor de A Montanha dos Três Mestres e diversos outros contos.