Por um longo tempo exerci o ofício de tradutor, e ainda exerço, traduzindo mais de 40 títulos do alemão para o português. Obras de escritores e pensadores diversos, como Brecht, Goethe, Kafka, Schopenhauer, Klaus Mann, Hölderlin, Büchner e Martinho Lutero, entre outros. Ontem dando uma entrevista, via Skype, ao Centro de Tradução (Zentrum für Translationswissenschaft) da Universidade de Viena, fui levado a refletir novamente sobre a tradução e seus mistérios.
Abordei o tema à luz de uma afirmação de um dos maiores escritores da literatura universal: Jorge Luis Borges. Seu livro “Las versiones homéricas” começa com a seguinte reflexão: “Não existe nenhum problema tão substancial com as letras e com seu modesto mistério, como aquele que propõe uma tradução”. Segundo ele, a tradução parece destinada a ilustrar a discussão estética sobre a literatura; ele enfatiza também que a superstição sobre a inferioridade das traduções – propagada pelo conhecido provérbio italiano traduttore traditore – é fruto de um raciocínio superficial. Por conseguinte, ela é sentida como inferior ainda que seja tão boa quanto o original. Para Borges não existem textos definitivos, a não ser na religião, pois a literatura é um manancial inesgotável a partir do qual as infinitas combinações se sucedem e são reinterpretadas ao longo da história.
Gostaria de mencionar alguns pressupostos do ofício do tradutor ao longo da história:
Que concepção linguística orienta as nossas traduções? Até que ponto é realmente possível traduzir? Como variou ao longo do tempo o conceito de tradução? Existem critérios para uma boa tradução? Quais seriam eles?
As palavras rotulam coisas. Assim as palavras seriam como etiquetas de coisas que se reconhece sem a língua. Esse raciocínio está fundamentado no Crátilo de Platão. Para ele a língua atrapalha a compreensão do mundo e só existe como meio de comunicação entre os homens. Nesse caso traduzir seria fácil. Bastaria substituir uma palavra associada a uma coisa, a um conceito, na língua de partida à palavra equivalente na língua de chegada.
Quase dois mil anos depois, Wilhelm von Humboldt assumiu a posição oposta. Segundo ele, as palavras não são apenas sons e sim a combinação da dimensão material com a dimensão espiritual. Só a partir das palavras é possível compreender o mundo e são elas que determinam a nossa visão de mundo. Como cada palavra é única em sua qualidade sonora e significativa, o acesso ao mundo depende da língua utilizada. Aceitando-se esse fato, traduzir seria impossível ou, no mínimo, extremamente difícil. Schleiermacher chegou a afirmar que cada tradução deveria deixar transparecer que é uma tentativa impossível.
Em resumo, o conceito de tradução se modificou através dos séculos, mas sempre oscilando entre dois polos: o da fidelidade ao texto e o da interpretação do tradutor. São conceitos curiosos, bem semelhantes aos de uma relação afetiva: ou você é fiel ou comete traição, traindo o autor ao se envolver com outras palavras. Daí que a falsidade, a traição e a infidelidade sejam até hoje os piores crimes do tradutor.
A ideia de tradução literal é oriunda da Idade Média quando inúmeros tradutores se defrontaram com necessidade de se traduzir a Bíblia. Como se trataria de um texto escrito pelo próprio Espírito Santo, cada palavra ali teria então um sentido que não poderia em hipótese alguma ser modificado. E seria blasfêmia se intrometer no texto escrito por uma inteligência infinita, eterna. A tradução deveria ser fiel e jamais sofrer qualquer interferência do tradutor. Obviamente uma missão impossível. As traduções literais podem criar ênfases desnecessárias e falsas, embora muitas vezes sejam responsáveis pela criação de belezas muito próprias e de novas metáforas em uma língua.
O tradutor, por outro lado, não pode escolher somente as passagens que mais o interessam num texto. Borges cita uma polêmica ocorrida no século XIX entre dois tradutores ingleses, Newmann e Arnold: um defendia a eliminação pura e simples de todos os detalhes que pudessem distrair o leitor, o outro a versão absoluta de todas as singularidades verbais.
Hoje, ninguém tem dúvida de que o tradutor tem de interpretar com rigor o texto de partida, avaliar toda metáfora ou alusão, examinar a sonoridade e o ritmo, captar os movimentos interiores, os sentimentos e as ideias por detrás daquelas palavras, pois tudo está carregado de sentido. Somos intermediários, tais como os bons instrumentistas recriam para os ouvidos contemporâneos obras de Bach, de Beethoven ou de Mozart.
Para Borges, não há diferença entre escrever e traduzir, já que a única boa tradução é aquela feita por uma alma de escritor. “A tradução literal é a mais infiel de todas”, disse ele, “pois dá somente o sentido, e não o essencial, que é a linguagem, o ambiente das palavras e, sobretudo, as cadências, o ritmo. Portanto é preciso haver uma recriação do texto ou, talvez, uma criação diferente, mas que também seja única.”
*Gestor cultural, Diretor de Teatro, escritor e tradutor de alemão.