Estudos antropológicos apontam que os seres humanos, desde tempos imemoriais, imprimiram mudanças nos ambientes e em si mesmos. Neste último apontamos as mudanças psicosomáticas: racionalidade ou capacidade para pensar, sentimentos, valores e transformações anatômicas. Essas mudanças como um todo são registradas com o nome de cultura. As transformações foram resultados da milenar luta dos humanos pela sobrevivência, que se expressaram na relação com a natureza e de uns com os outros. Na relação com a natureza os humanos desenvolveram técnicas para dominá-la, mas para tanto e, concomitantemente, foram desenvolvendo formas de convivência ou relações sociais, entre indivíduos e entre os grupos. O resultado foi o que chamamos de comunidade e sociedade.
Implicadas na luta pela sobrevivência e preservação os humanos criaram linguagem, narrativas míticas, magia, religião, família, comunidade, arte, economia, técnicas, filosofia, ciência, normas, política, etc. Os humanos criaram, portanto, os conceitos através dos quais eles falariam sobre o mundo. Vamos sintetizar tudo isso na expressão “visão de mundo”. Mas para expressar os conceitos estabeleceram instituições, isto, mecanismos materiais através dos quais as ideias são comunicadas. Exemplo: as crenças mítico/religiosas são materializadas através de ritos e práticas com um ordenamento institucional que trabalha para a sua reprodução e eficácia. É o mesmo que dizer que a “verdade” não é aceita apenas pela sua coerência lógica. É preciso uma instituição ou organização que tenha poder para sintetizá-la, expandi-la, desenvolver instrumentos pedagógicos para fixá-la em ideias e práticas sociais de forma a serem aceitas como naturais por indivíduos e grupos.
Para permanecer na linha de nosso assunto peguemos a questão da política. Dentre os vários significados do conceito peguemos aquele que, no esforço de determinar sua essência, o fundamenta como busca pelo poder para o exercício de uma relação de poder (força) de alguém sobre alguém ou de um grupo sobre outro grupo. Busca-se a política (posição de poder) para o exercício de um poder (força) de quem o tem sobre outro que não o tem. A relação de poder político torna-se, portanto, uma relação dissimétrica. Afirma-se até que quem busca o poder político ou posição de mando é estimulado pelos atrativos de desejo de honra, glória, prestígio e prazer. Caem por terra aqui as afirmações de que o exercício do poder político é resultado do desejo de prestar um serviço ao povo, à instituição, à comunidade, à nação, à sociedade, à história. Embora polêmico tal entendimento essas reflexões advieram da corrente realista da política, desenvolvidas a partir das ideias maquiavelianas e hobesianas.
Achamos que o esclarecimento da proposta de “escola sem partido” tem que ser abordado a partir da noção de política, do realismo político, porque a proposta revela e esconde uma visão de sociedade e de poder social. É o realismo político (Gramsci) que sustenta que a prática política ou como ela praticamente e vivamente se expressa é que é reveladora do que pensamos e do que acreditamos pensar sobre a sociedade ou sobre o mundo.
Os seguimentos que têm sustentado as propostas da escola sem partido a apresentam a distribuem em dois aspectos principais: a) a escola, sobretudo a escola pública, não deveria ser um espaço onde se praticam análises sociais e ou críticas políticas. Isto levaria a criar tensões na ordem social vindo inclusive a ameaçá-la. O espaço institucional escolar deve cuidar apenas do treinamento para o trabalho e não aprofundar análises críticas da história, da convivência social, das contradições econômicas e políticas que se observam em nosso contexto cultural. Os conteúdos didáticos não deveriam conter temas que abram possibilidades para atitudes de insubordinação para os adolescentes. Uma certa visão, portanto, paternalista do ato educativo; b) uma outra proposta defendida com mais clareza refere-se à questão de gênero, vinculada mais explicitamente à atitude LGBT. Argumenta-se que o reconhecimento de gênero tal como proposto pelo segmento LGBT contém ameaça à estrutura da família tal como existe hoje (pai, mãe e filhos), em desacordo como a denominação de família proposta pelo velho e novo testamento na Bíblia.
Apresento aqui como ingrediente às polêmicas que envolvem as duas questões a argumentação de que a proposta de uma escola sem partido esconde uma postura política defensora do status quo. A primeira com um conteúdo político mais explícito, já disse, e a segunda com um conteúdo menos aparente. Ao se pretender defender a família está a se defender uma certa ordem social, ou seja, a ordem das relações entre os sexos, das relações entre o macho e a fêmea que caracteriza a heteronormatividade, antiga mas com mais predominância como padrão biológico desde o século XVIII e, portanto, também social porque determina os lugares “naturais” dos corpos na sociedade. A defesa da família ideologicamente esconde uma posição política, na medida em que argumentos teológicos são usados como capa que escondem a defesa de um modelo de relações sociais. O ser religioso quando fala sobre política fala como ser político.
Em outro texto apresentarei a última argumentação com mais detalhes, referente a uma crítica paradigmática mais recente.
* Professor da EMESCAM e Universidade Federal do Espírito Santo (aposentado); Mestre em Filosofia e Sociedade.