Desde o último governo militar o Brasil configurou um sistema unificado de previdência social, garantindo aos trabalhadores urbanos o direito de contar, na sua velhice, com um beneficio previdenciário. A gestão da previdência social, ao longo do regime militar, esteve longe de ser eficiente e transparente, mas, a despeito disso, e pela própria lógica dos regimes de repartição simples que ainda o caracteriza, gerou saldo positivo até 1981. Não obstante, esses saldos foram utilizados para bancar a saúde pública do país, que nunca contou com fontes estáveis para seu financiamento. Diga-se de passagem, é estrutural no Brasil esse descompromisso dos governantes e da sociedade com a destinação de parcelas do orçamento público específicos para o financiamento de políticas sociais.
A Constituição de 1988 foi um marco com relativas mudanças nesse quadro, como um coroamento da forte mobilização social que caracterizou a década de 1980. Garantiu, num plano legal, a inserção dos trabalhadores rurais ao sistema integrado de previdência social, estabeleceu como piso de benefício o salário mínimo e corrigiu monetariamente os benefícios de forma a assegurar o seu poder aquisitivo. A grande mudança qualitativa, todavia, foi introduzir a concepção de Seguridade Social, conjugando num mesmo orçamento a Previdência Social - que se mantinha como política social voltada para atender aos trabalhadores vinculados à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) – a Saúde e a Assistência Social. A noção de que o Estado deveria garantir, no plano orçamentário, certos direitos mínimos a todos os cidadãos, foi o diferencial. O orçamento da Seguridade Social contaria com fontes próprias, as quais envolveriam não apenas as contribuições do empregador e do empregado à previdência. Tais fontes poderiam atingir também o faturamento e o lucro das empresas.
Os anos que se seguiram evidenciaram as dificuldades de se sustentar politicamente, em nível do orçamento federal, essa visão de direitos mínimos que notabilizou a Constituição de 1988. A política econômica passou a sofrer forte enquadramento dos defensores do Estado mínimo que se tornaram dominantes na sociedade e na condução dos governos desde Collor de Mello. Com isso o orçamento específico de seguridade jamais foi implementado e a política continuada de ajuste fiscal foi de fato sustentada, do inicio dos anos 1990 até 2015, com forte elevação da carga tributária proveniente especialmente de contribuições sociais. Por outro lado, pelos mecanismos de desvinculação de receitas criados já em 1993 e perpetuados até hoje, subtraiu-se volumes expressivos de recursos da seguridade para o orçamento fiscal. Além disso, o financiamento da saúde só em 2015 foi garantido por emenda constitucional, vinculando recursos orçamentários. Infelizmente, a medida era apenas um artifício da pauta bomba de Cunha visando complicar ainda mais o governo Dilma, e não um efetivo compromisso do parlamento com a saúde pública do país. Tanto que foi revertida na prática pelo estabelecimento, em 2016, da Emenda Constitucional do teto de gastos não financeiros por 20 anos.
Paralelamente, a Assistência Social foi gradualmente se fortalecendo, até a configuração do Sistema Único de Assistência Social, em 2004, mas sem garantir fontes que sustentassem a provisão dos serviços que demandava. O relativo crescimento de recursos para a Assistência Social nos governos Lula e Dilma envolveu muito mais a concepção de renda mínima, do fortalecimento dos benefícios da LOAS, do que a garantia dos Direitos mínimos estabelecidos na Constituição de 1988.
No que tange à Previdência Social, ela foi tratada ao longo de todo esse período de um ponto de vista estritamente fiscal e não como uma política social. Sua gestão foi feita num orçamento hipotético que computava todos os benefícios envolvidos, aos quais o governo federal agregou também os benefícios previdenciários do funcionalismo federal – gastos de um regime de previdência que não fazem parte da Seguridade Social. Do lado das receitas apareciam apenas as contribuições dos trabalhadores e empregadores do Regime CLT e do funcionalismo federal. Desta forma, do que o governo denomina rombo da previdência, cerca de um quarto dos gastos são referentes aos trabalhadores estatutários federais. Foi patente a desfiguração da Seguridade como Política Social, embolando os dois regimes bem como os orçamentos fiscal e de seguridade.
É sobre essa base prévia que aparece a proposta de radical reformulação da previdência no Brasil que está em discussão no congresso e funde os dois regimes de forma definitiva, extingue na prática com a ideia de Seguridade Social e descompromete o governo com um sistema de Previdência Social Público. A aprovação da PEC 55 no ano passado já trazia no seu bojo essa concepção, impondo forte redução dos chamados gastos previdenciários, o segundo item de gastos do governo, sendo o primeiro as despesas com a remuneração da dívida pública.
No Regime sob a CLT a reforma conjuga-se com medidas graduais de flexibilização do mercado de trabalho no Brasil, que retiram direitos extremamente básicos do trabalhador conquistados pela própria CLT. Tais mudanças resultam, no que diz respeito à Previdência Social, na corrosão das fontes de receita, desobrigando os empregadores de uma série de compromissos relativos a contribuições sociais, cristalizando em redução da carga tributária as renúncias fiscais que foram concedidas irresponsavelmente pelo governo Dilma.
Imposta goela abaixo e a toque de caixa, a reforma da previdência em curso estende a vida laboral dos trabalhadores de forma significativa, ampliando a idade mínima e o tempo de contribuição, além de reduzir o compromisso do Estado com o valor do beneficio. Obter 100% do rendimento recebido na ativa ou do teto de benefício se torna uma missão impossível. Ela está associada com a alteração da sistemática de reajuste do salário mínimo visando reduzir o valor real dos benefícios previdenciários e dos assistenciais da LOAS.
Diferente das reformas feitas por FHC ou Lula, o que se propõe é algo radical, que trará mudanças de fundo na sociedade brasileira, numa retirada de direitos previdenciários e assistenciais sem precedente na nossa história. A proposta chega a requintes de crueldade ao elevar a idade de acesso de idosos de baixa renda ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) de 65 para 70 anos, além de desvincular o seu valor do salário mínimo, com perdas para idosos e deficientes físicos mais pobres.
Por fim, o coro quase uníssono de economistas em defesa da proposta, esconde ao público leigo, sob o manto de modelos pomposos e números, a própria fragilidade dos modelos atuariais que o governo federal lança mão. As projeções para um futuro remoto, 2060, utilizam uma metodologia pouco transparente e com pressupostos questionáveis. Esta tem sido desenvolvida no âmbito dos anexos das LDOs, aplicadas entre 2002/2017, envolvendo erros sistemáticos de previsão, para além do aceitável do ponto de vista estatístico . Esses erros se aprofundam, se aplicados num horizonte de longo prazo e levando-se em conta as habituais incertezas e complexidades do mundo econômico e social. Com base nesse tipo de dados os profetas do caos projetam um futuro apocalíptico caso a reforma previdenciária não seja aprovada. Urge discutir a proposta da reforma da previdência em pauta, exigir um amplo debate, exigir transparência e robustez nos modelos utilizados como base e, ao mesmo tempo, atentar para a gravíssima reversão social que significará a sua aprovação nos termos com que tem sido conduzida.
*Economista, professora, Doutora em Ciências Econômicas.
Grupo de Estudos e Pesquisa em Conjuntura – Economia/ UFES
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